A Importância das Job Descriptions como Ferramenta de Prevenção da Responsabilidade Penal de Dirigentes
- Thais Faria
- há 6 dias
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No contexto da crescente complexidade das estruturas empresariais e da expansão do Direito Penal Econômico, tem-se revelado essencial que as sociedades empresárias adotem mecanismos internos de governança capazes de delimitar, com clareza, as responsabilidades funcionais de seus dirigentes e administradores. Nesse cenário, emerge como instrumento estratégico e indispensável a elaboração formal de job descriptions — descrições de cargos que estabelecem, de maneira precisa, as atribuições, os deveres e os limites de atuação de cada integrante da administração.
Sob a perspectiva jurídico-penal, a importância dessa prática não reside meramente na organização interna da empresa, mas no seu potencial de funcionar como meio de proteção jurídica, sobretudo frente à tendência acusatória de imputação penal indiscriminada a sócios e administradores, com base única e exclusivamente no fato de ocuparem posição formal na estrutura societária. O ordenamento jurídico brasileiro, com exceção dos crimes ambientais (art. 3º da Lei nº 9.605/98), não admite a responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Assim, quando um fato típico e ilícito é cometido no seio da empresa, a persecução penal inevitavelmente recai sobre pessoas físicas, geralmente dirigentes ou sócios administradores.
Essa realidade dá ensejo a imputações penais genéricas, desprovidas da necessária análise do nexo de causalidade, do tipo de conduta (comissiva ou omissiva) e da posição ocupada no organograma corporativo. Tal distorção fere frontalmente o princípio da responsabilidade penal subjetiva, ao presumir a autoria ou participação em razão do cargo, sem perquirir a efetiva conduta do agente.
Nesse ponto, a dogmática penal contemporânea — especialmente no que tange à criminalidade econômica — exige a identificação da conduta típica individualizada, ainda que dentro de estruturas corporativas fragmentadas, onde há pulverização de funções e informações. O modelo acusatório precisa considerar a divisão horizontal e vertical de tarefas no ambiente empresarial, utilizando, para tanto, critérios como o princípio da confiança, o princípio da delegação, e a teoria da omissão imprópria, especialmente quando se trata de imputação por conduta omissiva culposa.
A jurisprudência penal, nacional e comparada, vem paulatinamente reconhecendo que a atribuição de responsabilidade penal a dirigentes deve observar parâmetros rígidos. Entre eles, destaca-se a necessidade de verificar se o agente tinha o dever de agir para impedir o resultado (posição de garantidor), se houve delegação de poderes válida e segura (com base em critérios de seleção, instrução e supervisão), e se o risco criado é juridicamente desaprovado e realizado no resultado (imputação objetiva).
As job descriptions, nesse contexto, cumprem papel essencial: funcionam como documentos de formalização dos círculos concretos de deveres assumidos por cada dirigente. Elas permitem ao julgador aferir, com maior precisão, se determinado agente ocupava posição de garantidor, se tinha poderes e deveres de supervisão, se agiu com negligência ou se, ao contrário, atuou dentro dos limites razoáveis do risco permitido e da delegação confiável.
Além disso, tais descrições viabilizam a aplicação prática do princípio da confiança, amplamente adotado pela doutrina alemã. Trata-se de princípio segundo o qual, em estruturas organizadas, os agentes podem confiar na atuação correta de seus pares e subordinados, salvo se houver indícios concretos de falhas, histórico de condutas irregulares ou omissão de deveres de vigilância. Quando bem estruturadas, as job descriptions ajudam a sustentar essa confiança, ao estabelecer claramente o escopo de cada função e o alcance do poder-dever de cada gestor.
Não se pode olvidar que, no âmbito das relações verticais, o superior hierárquico jamais se exonera completamente da responsabilidade. A delegação impõe, em regra, deveres residuais de vigilância, de forma que a omissão penalmente relevante poderá subsistir em caso de falha no treinamento, na instrução ou na coordenação. Entretanto, quando essas etapas estão documentalmente demonstradas, inclusive mediante uma job description adequada, torna-se mais seguro afastar a imputação penal por omissão imprópria.
Por fim, a adoção das job descriptions insere-se no bojo das boas práticas de compliance e governança corporativa, fortalecendo a cultura da responsabilidade individual e contribuindo para a mitigação de riscos penais. Além de favorecer a defesa técnica em eventuais procedimentos criminais, sua existência revela preocupação prévia e concreta da empresa com a prevenção de ilícitos, o que pode ser valorado positivamente tanto no juízo de culpabilidade quanto na dosimetria da pena.
Diante disso, é imperativo que as empresas implementem e atualizem periodicamente descrições funcionais precisas e compatíveis com as exigências legais. Tal providência não apenas organiza a dinâmica corporativa, mas representa verdadeira salvaguarda penal para dirigentes diligentes, ao permitir a correta delimitação de sua esfera de responsabilidade e a identificação de eventuais lapsos atribuíveis a outrem.
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